
"Intimidade" entre homens e felinos no Pantanal mostrou que pode ser fatal
Publicado em 23/04/2025 15:47
Especialistas alertam sobre os riscos da prática ilegal conhecida como "ceva" no Pantanal, que consiste em alimentar onças-pintadas para facilitar a observação turística. O biólogo Sérgio Barreto, do Instituto Homem Pantaneiro, registrou em vídeo uma onça próxima a uma embarcação, destacando o perigo dessa aproximação entre animais selvagens e humanos. A prática é apontada como principal causa do aumento de registros de onças circulando em áreas habitadas, colocando em risco moradores locais, ribeirinhos e turistas. Segundo especialistas, o Pantanal possui abundância natural de presas, descartando a hipótese de que a aproximação seja causada por escassez de alimentos. O alerta ganha ainda mais relevância após a morte recente do caseiro Jorge Ávalo, de 60 anos, vítima de ataque de onça no pesqueiro Touro Morto.
No Rio Aquidauana, na região do Pantanal, o biólogo Sérgio Barreto, do IHP (Instituto Homem Pantaneiro), gravou um vídeo alertando para os riscos da ceva — prática ilegal que consiste em oferecer alimentos a animais selvagens para facilitar a observação da fauna por turistas. Ao fundo das imagens, uma onça aparece próxima a uma embarcação vazia, às margens do rio. È a proximidade arriscada, que pode criar tragédias como a morte de caseiro atacada por uma onça nesta semana.
Barreto afirma que aproximar a vida selvagem do ser humano coloca em risco a segurança de moradores locais, ribeirinhos e até turistas, doidos pelo privilégio de ver um animal deste porte. A gravação é de 2020, mas ilustra uma a prática recorrente no Pantanal.
A ceva é apontada pelo biólogo Fernando Torquato, da ONG Panthera Brasil, como um dos principais fatores que explicam a presença crescente de onças em áreas habitadas no bioma, como pesqueiros. Fundada em 2014, a organização se dedica à conservação das nove espécies de felinos selvagens do Brasil.
Registros de onças circulando por propriedades rurais no Pantanal têm se multiplicado, como na região do Passo do Lontra, na Nhecolândia, onde uma onça foi flagrada caminhando por um rancho e se aproximando de uma embarcação, próxima a uma passarela.
Torquato destaca que, embora o Pantanal tenha sido afetado por queimadas e desmatamentos, o bioma ainda apresenta abundância natural de presas. Por isso, não seria a escassez de alimento o motivo da aproximação dos felinos.
“A onça está onde deveria estar. Somos nós que precisamos aprender a lidar com essa coexistência”, afirma o biólogo. Segundo ele, os felinos podem ter se habituado à presença humana e passam a buscar presas mais fáceis, como cachorros, galinhas e até bovinos.
Por isso, a ceva é considerada de alto risco. “Não é natural que a onça seja alimentada por humanos. Isso não é correto e aumenta muito a possibilidade de acidentes”, explica Torquato. “A onça não pode se sentir confortável em ambientes com presença humana. Esses animais não são pets.”
O mesmo alerta é feito pelo médico-veterinário e pesquisador Diego Viana. Para ele, a proximidade dos animais não está relacionada exclusivamente a queimadas ou desmatamentos.
Viana destaca que estudos científicos indicam que os incêndios no bioma podem afetar temporariamente algumas espécies, mas não eliminam a variedade de presas disponíveis. “A capivara diminui no primeiro ano, mas o número de jacarés aumenta, por exemplo. A falta de alimento deve ser considerada apenas como última hipótese.”
O pesquisador defende que, além de evitar a ceva, é necessário adotar medidas para afastar os felinos de áreas habitadas, como o uso de cercas elétricas ao redor das propriedades.
Uma das organizações que cuidam da preservação dos felinos no Pantanal também observa como o comportamento dos animais tem mudado. Nesta semana, postou foto da onça Joca Ramiro, monitorada pela ONG Onçafari. "Ficou bem próximo da nossa equipe, à vontade com a proximidade por um bom tempo. Joca parece estar se habituando com a presença dos carros e já chegou até a se exibir para os hóspedes da pousada".
No caso de Jorginho, morto nesta semana, o local onde vivia é um chamariz para animais, lembra o biólogo Gustavo Figueroa, especialista em manejo de fauna. "São pesqueiros, onde as pessoas pegam e limpam peixes ali na beira do rio. Quando eles saem, as onças são atraídas pelo cheiro, elas vão buscar esse lugar, comem, se alimentam ali dos restos do peixe e tudo mais, elas começam a entender que é um lugar associado à comida".
Tal proximidade faz com que os dois lados percam o medo, um do outro, reforça. "A onça já estava acostumada, o seu Jorge já estava acostumado também com as onças, já tinha vários relatos, inclusive, em vídeos de que as onças estavam visitando lá várias vezes, estavam literalmente na porta da casa onde ele morava e numa manhã ele saiu sozinho ali numa área que as onças já estão acostumadas", diz.
Na avaliação dele, é precisa trabalho de conscientização com pessoas que vão visitar ou que moram no Pantanal, de que as onças são predadores. "Elas não são vilãs, elas não estão atrás do ser humano para comer, mas se a gente interfere nesse equilíbrio, se a gente não respeita essas regras de coexistência, a gente abre brechas para esse tipo de acidente acontecer," explica.
Para Guilherme Bumlai, presidente da Acrissul (Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul), a pecuária extensiva dificulta o cercamento das invernadas. Como medida paliativa, produtores costumam manter os bezerros em áreas com mais movimento, na tentativa de inibir ataques de onças.
“Não é uma solução definitiva. Não há muito o que se fazer, é preciso conviver”, afirma Bumlai, contrário à ceva. Ele defende a conscientização de guias e piloteiros para que não incentivem a prática.
Bumlai é proprietário de um hotel no Morro do Azeite, a cerca de 1h30 do pesqueiro Touro Morto, onde o caseiro Jorge Ávalo, de 60 anos, foi morto após o ataque de uma onça. Ele desapareceu na segunda-feira (21) e seus restos mortais — a parte inferior do corpo — foram encontrados na terça (22), a cerca de 300 metros do local do ataque.
O criador afirma ter observado um aumento na presença de onças no Pantanal e orienta os turistas a não interagirem nem alimentarem os animais.
Rogério Cunha de Paula, coordenador do Cenap/ICMBio (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), alerta que não há dados que comprovem esse aumento populacional.
“Com base em qual escala temporal? Comparado a 30 anos atrás? Não existe estudo que sustente isso”, afirma, ressaltando a necessidade de cautela para evitar que tais alegações sirvam de justificativa para a caça de felinos.
Fernando Torquato acredita que a percepção de aumento pode estar ligada ao avanço das tecnologias de vigilância.
“Antes não era comum o uso de sistemas de monitoramento. Hoje, a maioria das fazendas e pesqueiros tem câmeras de vigilância”, diz ele, avaliando que isso facilita flagrantes de onças rondando propriedades.