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Insistência demais ou crime? Advogada explica como identificar o stalking

Publicado em 17/04/2025 09:58

Eu notei que estava sendo perseguida por ela quando, sem motivo algum, ela aparecia em lugares aleatórios, fora do nosso convívio”, conta Júlia*, de 30 anos.

O artigo do aborda o caso de Júlia, a primeira pessoa em Mato Grosso do Sul a obter uma medida protetiva contra stalking, crime de perseguição obsessiva. Júlia foi perseguida por uma colega de faculdade por mais de seis anos, enfrentando dificuldades para registrar ocorrências devido à falta de entendimento das autoridades. Com a ajuda da advogada Vitória Junqueira, ela conseguiu a proteção judicial. A Lei 14.132/2021, que criminaliza o stalking no Brasil, prevê penas de até quatro anos de prisão. O artigo também destaca o aumento de registros de stalking no país, atribuído à maior conscientização e disposição das vítimas em denunciar.

Vítima do crime de stalking, a campo-grandense foi a primeira em Mato Grosso do Sul a conseguir uma medida protetiva com base nessa tipificação. Stalking é o termo em inglês usado para descrever a perseguição insistente e obsessiva de uma pessoa, seja de forma física ou virtual. No Brasil, em 2021, foi sancionada a Lei 14.132/2021 que criminaliza a prática e prevê pena de reclusão de seis meses a dois anos.

Júlia conheceu a sua perseguidora na faculdade, onde ambas faziam o mesmo curso. Não tiveram nenhum tipo de envolvimento amoroso ou vínculo de amizade, nada. Ainda assim, ela conta que passou a ser perseguida em casa e também no ambiente virtual. “Eu via o carro dela em lugares perto da minha casa, muitas vezes até na minha rua, postagens nas redes sociais fazendo menção a mim e a amigos que estavam comigo, e muitas das vezes até ameaças”, afirma.

De forma insistente e repetitiva, a perseguidora chegou a ir ao trabalho de Júlia em outra cidade, além de aparecer em salões de beleza e restaurantes. “Eu me via presa dentro de casa e com medo de sair, com medo de ter amigos e compartilhar acontecimentos com eles por receio dela saber da minha vida”, completa.

A perseguição durou mais de seis anos e trouxe problemas físicos e emocionais ao ponto de a vítima precisar tomar antidepressivos. Nesse tempo, mais de uma vez, ela procurou a delegacia para registrar boletim de ocorrência, porém não conseguia dar continuidade porque a polícia colocava entraves no processo. “Eles não consideravam a minha história digna de um boletim de ocorrência. Falavam: ‘Você já tentou falar com ela? Mas ela te bateu?’. Sempre tentavam me desmoralizar ou diminuir minha experiência. Foram mais de seis anos tentando procurar algum meio de me proteger dela”, comenta.

Em 2023, a advogada Vitória Junqueira Cândia foi procurada para representar Júlia. Nesta quarta-feira (16), a advogada de direito de família, que hoje é especializada em casos de stalking, conversou com a reportagem sobre esse tipo de crime. Na época, o caso da Júlia seria o primeiro de outros que chegaram até a advogada nos anos seguintes.

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Vitória explica quais foram as primeiras orientações que ofereceu à cliente, começando pelo boletim de ocorrência por preservação de direitos. “Eles registraram, e com esse boletim de ocorrência nós fizemos o pedido das medidas protetivas de urgência análogas à Maria da Penha. Hoje, o ideal é fazer o pedido de medida cautelar, mas na época a ideia foi usar de forma similar à Maria da Penha e funcionou”, pontua.

Em questão de dois meses, a partir do momento que procurou a advogada, Júlia conseguiu a medida. Essa conquista, conforme Júlia, a deixou mais resguardada. “Eu definitivamente me senti mais segura após a medida protetiva, porque eu tinha a certeza de que estava amparada pela Justiça se ela tentasse fazer alguma coisa. Eu sabia que não era coisa da minha cabeça essa perseguição toda”, diz.

Antes da lei de 2021, a prática de stalking era enquadrada apenas como contravenção penal, que previa o crime de perturbação da tranquilidade alheia, punível com prisão de 15 dias a dois meses e multa. Hoje, quem pratica o crime de stalking pode cumprir a pena máxima de quatro anos quando praticado contra mulheres, crianças ou idosos.

Quando a insistência vira crime - Mas como saber se você está sendo vítima desse tipo de crime? A advogada Vitória Junqueira também falou sobre isso nesta quarta-feira, quando foi procurada pela reportagem. De antemão, ela esclarece como a lei enxerga a prática de stalking.

“Ele vai ser tipificado dessa forma quando é feito de forma reiterada a um ponto que invade a privacidade da pessoa. Então são dois fatores cumulativos. A pessoa tem que se sentir invadida e o poder judiciário tem que encarar essas ofensas de forma reiterada, ou seja, mais de uma vez, como de fato excessiva”, declara.

Ligações, mensagens, ser seguido em diversos ambientes são formas de stalking. A perseguição pode acontecer de forma presencial ou on-line, e ambas se enquadram como crime na lei brasileira. A advogada orienta que vítimas de stalking documentem e preservem possíveis provas que podem auxiliar nestes casos e que procurem imediatamente a polícia.

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“É um dever de todos os policiais registrarem as ocorrências, seja por preservação de direitos, seja pelo crime de stalking. Esse é o primeiro passo”, diz.

E não importa se o fato é recente, se aconteceu há semanas, meses ou anos. O boletim de ocorrência pode e tem que ser feito. “Registrou o boletim de ocorrência? Procure um advogado ou advogada para que eles façam o pedido de medidas cautelares. Se a resposta for positiva, o juiz vai interromper esse contato entre vítima e agressor”, afirma.

Vitória faz questão de enfatizar que, durante esse processo, a pessoa acusada de perseguição terá oportunidade de se defender. Além da medida protetiva, a vítima tem o direito de pedir indenização por danos morais e, dependendo do cenário, danos materiais. Isso, se quiser.

A mulher que perseguia Júlia, por exemplo, não foi processada. Porém, a medida protetiva segue valendo e ela não pode fazer qualquer aproximação ou menção sobre ela na internet.

Dados em MS - O crime de stalking totalizou 77.083 registros no Brasil em 2023, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado em 2024. Em Mato Grosso do Sul, foram 1.223 ocorrências notificadas no mesmo período. No ano em que a lei passou a valer, em 2021, o Estado contabilizou 49 registros de stalking. Esses dados constam na publicação feita em 2022.

Em relação ao crescimento desse tipo de crime a nível nacional, o próprio Anuário Brasileiro de Segurança Pública apresenta uma justificativa na edição do ano passado.

“Se por um lado o crescimento desses crimes é ruim, de outro lado os dados também podem significar um aumento da disposição das mulheres em buscar ajuda nesses casos, o que tem consequência, em alguma medida, o reconhecimento da violência presente nessas condutas. E especialmente em relação à violência psicológica e ao stalking, é preciso considerar que são figuras que somente recentemente foram criminalizadas (ambos em 2021), de modo que o aumento dos números também pode ter relação com a melhora na qualidade do registro.”

*Júlia é um nome fictício para preservar a identidade da personagem e de terceiros

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